Confira o artigo a seguir, retirado de http://www.conjur.com.br/2012-set-27/supremo-mudou-julgar-mensalao-ou-mensalao-mudou-supremo#autores
O Supremo
Tribunal Federal mudou para julgar o mensalão ou o mensalão mudou o
Supremo? Os ministros da corte negam, mas os advogados criminalistas
não hesitam em afirmar: o tribunal mudou seus paradigmas para condenar
os réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Levados por
irresistível corrente condenatória, afirmam os advogados, os ministros
optaram por um retrocesso em que se atropelaram princípios
constitucionais construídos ao longo dos últimos anos.
Para o procurador de Justiça
Lenio Streck,
em um primeiro momento, é possível reconhecer razão aos advogados que
entendem haver um retrocesso em relação a posições consolidadas pela
jurisprudência do STF, na medida em que há um endurecimento por parte do
Tribunal no julgamento de determinadas condutas. Todavia, lembra o
jurista que novos tempos podem exigir novas respostas por parte do
Judiciário.
A grande questão que se coloca, então, é saber se esse
endurecimento se mostra necessário em face do tipo de criminalidade que
é objeto de julgamento. Nesse caso, a alteração de rota na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada no
contexto da resposta que o Judiciário deve dar à sociedade. Parece estar
havendo uma
accountabillity do STF em face de uma certa
demanda contra a impunidade. Se isso é bom ou ruim, é uma coisa que
teremos que avaliar. Para o jurista "o grande problema é que a doutrina
tem sido pouco ouvida. Talvez, por isso, esteja sendo pega de surpresa".
Em arremate, indaga: "Não está na hora de a doutrina se tornar
protagonista?".
Ainda não se sabe o quanto a releitura das regras
penais afetará, doravante, a forma de aplicar Justiça no país. Mas a
partir do momento em que a tipicidade de um delito deixa de ser
rigorosamente exigida para a condenação, o STF fixa um novo paradigma
regulatório. Mais: ao admitir o ato de ofício presumido e adotar o
“domínio do fato” como responsabilidade objetiva, os ministros teriam se
aproximado, perigosamente do direito penal de autor. Ou seja:
admitir-se que alguém possa ser punido pelo que é, e não pelo que fez.
Críticas
igualmente eloquentes são feitas à redefinição do que seja a lavagem de
dinheiro — que para o ministro Joaquim Barbosa parece prescindir de
crime antecedente. Ou, ainda, que qualquer uso que se dê a verbas de
origem ilícita configure lavagem. Os mais pessimistas, em seu
desapontamento com a doutrina que se insinua, anunciam o fim do
garantismo, o rebaixamento do direito de defesa e o avanço da noção da
presunção de culpa em vez de inocência.
Tristeza cívica
O ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil nacional e da seccional paulista
José Roberto Batochio lamenta
o movimento. "É tomado de tristeza cívica que assisto se perderem
valores tão caros às liberdades no vórtice desse movimento punitivo sem
limites que a tudo arrasta."
Um criminalista ouvido pela reportagem da revista
Consultor Jurídico,
mas que preferiu não ser identificado, afirma que o problema legal
trazido pelo julgamento do mensalão é "objetivamente a questão do
acavalamento de delitos". O maior problema, diz, não está nem dentro da
Ação Penal 470 , mas no futuro. "No curso dessa ação penal, é observada
uma sobreposição de crimes em relação a um mesmíssimo fato. O grande
dilema e herança negativa do julgamento talvez venha a ser a ausência
de definição dos elementos nucleares em cada um dos crimes. Onde acaba a
corrupção e onde começa a lavagem?", questiona. Para o criminalista,
não se nega a possibilidade de que os crimes tenham sido cometidos
simultaneamente, "mas é necessário mostrar como eles se distinguem".
O
advogado afirmou também que, com a sobreposição de imputações, é
colocada em dúvida a própria "identidade" do crime de lavagem de
dinheiro. "Quem se corrompeu e recebeu dinheiro tem que ir para a cadeia
porque é corrupto, e não por ter lavado dinheiro. O ladrão que rouba
um banco, leva a quantia para casa e a dissipa não está lavando
dinheiro", disse o criminalista.
Lavagem culposa
Para o advogado, a forma como os ministros passaram a interpretar as
imputações por lavagem pode dar margem para se acusar de lavagem de
dinheiro qualquer crime em que valores ilícitos não sejam declarados ao
fisco. "Quando não se distinguem elementos nucleares de cada ação
humana, corre-se o risco de entender que aquilo que deveria ser apenas
um crime de sonegação fiscal, praticado no âmbito da empresa, pode se
tornar facilmente uma espécie de 'três em um'. Isto é, com a ampliação
interpretativa de organizações criminosas, sendo a sonegação fiscal – o
caixa dois – o antecedente de lavagem, é muito provável que tenhamos
todas as três imputações presentes: sonegação, formação de quadrilha e
lavagem", observou.
Essa "nova interpretação", no entendimento do advogado
Luciano Feldens,
professor de Direito Penal da PUC-RS e advogado de Duda Mendonça,
forçaria um acusado de corrupção a declarar o dinheiro ilícito."Sob uma
perspectiva teórica e transcendente a qualquer caso específico, há uma
questão fundamental que não pode passar despercebida no debate
sobre o delito de lavagem de capitais:
"gastar" dinheiro sujo não equilave a "lavar" dinheiro.
A lavagem, enquanto delito, exige, por imposição do tipo penal, um
processo de ocultação e dissimulação da origem do dinheiro ilicitamente
havido, em ordem não apenas a recolocá-lo no sistema
econômico-financeiro, mas a recolocá-lo em tal ambiente com nítida
aparência de haver sido licitamente auferido. Do contrário — ou seja, se
compreendermos a simples utilização (gasto) do dinheiro como conduta
abraçada pelo tipo penal —, só não haveria o delito de lavagem de
dinheiro quando o agente, em paradoxal atitude, declarasse ao Estado o
dinheiro oriundo do crime antecedente (corrupção, sonegação, roubo,
sequestro, etc)".
Ele avalia também que a eventual influência da
ampliação do entendimento do que é crime de lavagem pode se estender à
fase de investigações. "Fica muito fácil, pelo menos no inquérito
policial, afirmar que se está investigando sonegação fiscal e também
quadrilha, porque o corpo diretivo da empresa é composto por mais de
três pessoas, e também lavagem, porque a quantia foi ocultada", aponta.
Outros criminalistas ouvidos pela
ConJur concordam
com a avaliação de mudança de interpretação do STF na distinção do dolo
entre imputações distintas nos crimes de corrupção. "O próprio
ministro Ricardo Lewandowski [
revisor do julgamento] afirmou
que não concebia dolo eventual no crime de lavagem de dinheiro, que é
um crime doloso, como já havia reiterado o ministro Cezar Peluso em seu
derradeiro voto ao se despedir da corte”, disse um deles. Um outro
criminalista observa que, deste modo, os ministros “estão criando a
figura da lavagem culposa ao aplicar a teoria da cegueira deliberada
sem que se observe limites ou restrições”.
Os advogados ouvidos
pela reportagem consideram ainda que o STF estaria indo além de decidir
que o fato de ocultar a origem do dinheiro caracteriza por si crime de
lavagem. “Ao não depositar a quantia em conta de sua titularidade, o
réu já estaria procedendo com a ocultação. Isto é, a ausência de
consignação que indique que o dinheiro pertence ao réu, além de mostrar
que o valor é ilícito, constitui também lavagem”, aponta um dos
advogados. “Em outras palavras, a confissão está se tornando
obrigatória”.
Como resumiu o criminalista
Celso Vilardi,
"a lavagem firmada no STF é lavagem jabuticaba: só existe no Brasil".
"A era Pertence, prestigiada mesmo depois de sua aposentadoria pelos
inúmeros precedentes incentivados pelo ministro Gilmar Mendes, acabou",
lamentou.
Segundo
Marcelo Leonardo, advogado do
publicitário Marcos Valério e professor de Direito Processual Penal da
UFMG, "é lamentável o STF abrir mão das garantias constitucionais do
devido processo legal e do contraditório para se submeter ao "Direito
Penal da mídia", que não se preocupa com os princípios da reserva legal
e da taxatividade tão relevantes para o Direito Penal e o garantismo,
conquistas do estado democrático de direito".
Inovação da matéria de fato
O exemplo da condenação do ex-vice-presidente do Banco Rural Vinícius
Samarane talvez seja o mais ilustrativo da questão do risco de se
incorrer em responsabilidade penal objetiva em relação a alguns dos
acusados na numerosa relação de réus da Ação Penal 470. Citada pelos
advogados durante a fase de sustentação oral e repudiada em Plenário
pelos ministros durante a atual fase do julgamento, a matéria voltou a
ser trazida à discussão pelo ministro Ricardo Lewandowski, ao votar
pela absolvição de alguns dos réus ligados ao Partido Popular (PP) e ao
antigo Partido Liberal (PL).
Antes, no julgamento do item
anterior, apenas Lewandowski e o ministro Marco Aurélio votaram pela
absolvição de Vinícius Samarane. Citaram, justamente, o argumento do
risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva. Samarane era
diretor estatutário do Banco Rural na época dos acontecimentos
descritos pela denúncia e, fora os depoimentos do ex-superintendente do
banco Carlos Godinho, que falou que pareceres técnicos em desfavor à
concessão dos empréstimos "morriam" na direção estatutária, não há
provas diretas de que o réu tenha participado da concessão de
empréstimos fraudulentos.
Por dispor, em tese, do chamado
“domínio funcional do fato”, decorrente da função que exercia, cabia a
Samarane, na visão dos ministros que votaram por sua condenação, ter
conhecimento das ilegalidades e até mesmo impedi-las. Na perspectiva da
teoria do domínio do fato, cabe avaliar se os crimes ocorreriam
independente da presença do réu. Se a resposta for positiva, o réu
poderia ser considerado inocente. É o caso, para alguns ministros, da
gerente financeira da SMP&B Propaganda Geiza Dias, absolvida por
maioria.
"É a teoria do domínio funcional do fato levado além do
extremo. Algo que até os mais radicais funcionalistas ficariam supresos
com seu alcance nessas condenações lavradas na essência do domínio do
fato", disse outro criminalista ouvido pela
ConJur na
condição de anonimato. "Samarane foi condenado por não ter evitado o
fato quando, na condição de diretor, devia e podia tê-lo feito. Mas a
denúncia, em nenhum momento, atribui ao réu a conduta de comportamento
omissivo", observa. "Isso representaria uma expressiva e inconcebível
inovação da matéria de fato. Seria necessário apontar a
responsabilidade penal por omissão."
Em
artigo publicado na revista
Consultor Jurídico,
Lenio Streck já havia alertado sobre o problema de se transformar a
teoria do domínio do fato em "ponderação", ou "em uma espécie de
'argumento de proporcionalidade ou de razoabilidade', como se fosse uma
cláusula aberta, volátil, dúctil".
Para Streck, "há algo de novo
no ar" com o julgamento do mensalão. "A parcela da doutrina 'mais
advocatícia' do Direito, por assim dizer, está sofrendo um revés",
observa. "Não significa que o STF esteja necessariamente inovando, mas o
que ocorre é que, ao mudar uma postura, a corte pega a comunidade de
surpresa. Os advogados parecem que confiavam em um ‘padrão’ de
apreciação e não contaram com um conjunto de circunstâncias que
circundaram e que circundam esse
case."
Contrapartida desvinculada
O criminalista e professor
Luiz Flavio Gomes avalia
ainda que a visibilidade do julgamento e a pressão da opinião pública
contribuem para que a Ação Penal 470 assuma caráter "heterodoxo"."Teses
antigas, consagradas na jurisprudência, estão sendo abandonadas."
Pondera que "isso decorre, em grande parte, da pressão midiática. Mas
não siginifica que as condenações, até aqui, sejam injustas, que tudo o
que o tribunal decidiu até este ponto seja absurdo. Porém, naqueles
momentos de zona cinzenta, em que se pode ir para um lado ou outro, o
Supremo passou a ir pela pressão pública, acolhendo teses que antes
não aceitava".
LFG, como é conhecido, acredita que ainda é cedo
para concluir, e que só depois do julgamento da parte política da AP 470
é que será possível fazê-lo.
Ato de ofício
Na questão específica do ato de ofício, observadores do julgamento ouvidos pela
ConJur
disseram que o entendimento de que cabe dispensar a comprovação do ato
de ofício não é uma inovação em si. O tribunal, no julgamento do
mensalão, na opinião dos especialistas, dá margem para a interpretação
de que não é necessário sequer apontar a vinculação causal entre a
vantagem indevida e o ato de ofício. "É uma distorção e transfiguração
que se imprime ao tipo penal de corrupção ao dispensar mesmo a simples
menção ao ato de ofício", disse um deles.
"Não se trata
simplesmente de exigir a comprovação da prática concreta do ato de
ofício na esfera de atribuições do agente corrompido. No entanto, o
Supremo tem acelerado tanto esse julgamento, a ponto de afirmarem que é
presincidível, desnecessário, que a denúncia mencione o objeto da
barganha da função pública, que motivou a aceitação de uma vantagem
indevida", avalia o criminalista. "A vinculação causal, ainda que
potencial, entre a vantagem indevida e um ato de ofício é a essência do
espírito da norma incriminadora. O que foi dito com todas as letras no
Caso Collor, está sendo desdito no atual julgamento", opina.
Mas,
na visão do advogado, isso não quer dizer que o Supremo criou uma nova
interpretação doutrinária. A tendência, diz, é que o próprio STF rejeite
decisões de instâncias inferiores que sigam a linha hoje defendida no
julgamento do mensalão. "O próprio Supremo tende a rejeitar, amanhã ou
depois, a doutrina que criou para esse caso. Será a confissão sublime e
formal que se tratou de um julgamento de exceção. Porém, muitos dos
atuais ministros não estarão mais na corte, será um novo tribunal ,
como uma nova cara e feição."
O advogado
Sérgio Renault,
ex-secretário da Reforma do Judiciário, trata a mesma dúvida com uma
outra ótica: “A questão mais importante a se verificar após o julgamento
da Ação Penal 470 é se o novo entendimento do STF se constituirá em
nova jurisprudência que será seguida daí por diante ou é um caso
pontual, isolado. Se for um caso isolado e se constituir numa exceção,
vejo a situação como mais preocupante pois não se deve conceber que o
julgamento da mais alta corte do país se dê neste contexto. Se o caso
tornar-se uma referência para julgamentos futuros menos mal. Assim, por
mais que discordemos, estaremos diante de uma evolução da jurisprudência
ou, se quiserem, de um retrocesso mas de qualquer forma de uma processo
normal de construção de uma nova jurisprudência”.
Para o advogado
Gustavo Teixeira,
membro da comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados
Brasileiros, é preciso fazer uma distinção entre os ministros do Supremo
e o tribunal como um todo. "O viés eminentemente teórico dos processos
normalmente julgados pela corte em grau de recurso se contrapõe à
análise fática que esse julgamento originário exige e com isso as
divergências entre ministros ficam mais evidentes. A unanimidade no
reconhecimento de teses é muito mais fácil de ser alcançada do que o
consenso na admissão de fatos", explica.
"Casos difíceis geram
péssimas jurisprudências", pontua Teixeira, torcendo para que os
ministros tenham em mente a peculiaridade do presente processo. "A
equivocada interpretação de que não há necessidade de crime antecedente
para se configurar a lavagem de capitais certamente não irá prevalecer
como corrente dominante, sob pena de sepultarmos princípios caros ao
nosso Direito Penal."
Nas palavras do advogado
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira
"o Poder Judiciário deverá manter íntegro o princípio da
responsabilidade penal subjetiva, pois, do contrário, estará instalada a
insegurança jurídica, que alcançará a sociedade, cuja expectativa,
hoje, é sempre pela culpa e não pela inocência, esquecendo-se que
qualquer de seus membros poderá sentar-se no banco dos réus e que não se
faz Justiça apenas quando se condena, mas também quando se absolve".